Considerações sobre a cadência no ciclismo

Manipulação neuromuscular para extrair o máximo em eficiência. 

A distribuição de cadência com uso de medidor de potência é analisada em quadrantes. Quadrante 1 = alta cadência e alta força; Quadrante 2 = baixa cadência e alta força; Quadrante 3 = baixa força e alta cadência; Quadrante 4 = alta cadência e baixa força, como se vê no gráfico abaixo.

Demonstrativo dos quadrantes como se vê no WKO5

Para começar: potência alta é aquela acima do seu FTP. Cadência alta é aquela acima do seu limiar de cadência (90 rpm é o padrão, mas deve ser calculado especificamente para cada atleta).

Cada combinação de cadência/potência vai demandar mais ou menos de três sistemas: o cardiovascular, o muscular e o neuromuscular. Tratando de forma específica para o ciclismo, o cardiovascular tem como função básica a de levar material nutritivo e oxigênio às células envolvidas na produção de energia. O sistema muscular representa o grupo de músculos envolvidos na produção de energia para girar os pedais. O neuromuscular é basicamente o impulso nervoso que flui do seu cérebro aos músculos e determina a velocidade com que você gira os pedais.

Somente o ato de sentar no selim já se utiliza obrigatoriamente estes três sistemas – não existe nenhum possibilidade de isolarmos suas funções, porém em situações específicas podemos demandar mais ou menos deles.

Por exemplo, desenvolver uma cadência mais alta ou mais baixa vai depender do nível de habilidade que se tem no sistema neuromuscular – para alguns usar uma cadência em 90 rpm é algo confortável que se pode sustentar por horas; para outros, apenas alguns minutos com cadência próxima a 90 rpm já apresenta sinais de fadiga. Quanto maior a quantidade de rotações por minuto, mais se demanda deste sistema.

Então os quadrantes em que o sistema neuromuscular é mais demandado são aqueles com alta cadência, quais sejam, o Q1 (cad alta/força alta) e principalmente o Q4 (cad alta/força baixa). E porque o Q4 demanda mais do que o Q1? Por conta da pouca aplicação de força, onde o foco fica na técnica da pedalada – por isso que se pede que os exercícios de cadência alta sejam feitos com potência baixa! O Q4 é o quadrante de manutenção de velocidade. Se toca no Q4 obrigatoriamente ao fazer a transição do Q3 para o Q1 ou Q2 – por ex. descendo um ladeira suave em Q3, embala um pouco no Q4 antes de iniciar um subida íngreme em Q2 (ou antes de entrar em um plano veloz em Q1).

O sistema muscular é basicamente o grupo de músculos envolvidos na produção de energia para girar os pedais. Deve-se pensar na quantidade de força muscular utilizada para cada revolução do pedal, então os quadrantes em que mais se demanda força é primordialmente o Q2 (cad baixa/força alta). O Q1 também tem uma demanda alta de força, mas a depender da cadência que se desenvolve, pode não ser tão impactante para o sistema muscular. Vejamos: 100 rpm com 300w = 3.0w gerados a cada revolução do pedal dentro de 1min. 50 rpm com 300w = 6.0w gerados a cada revolução. Ou seja, a demanda muscular nesta segunda situação é 2x mais alta.

O sistema cardiovascular será mais utilizado quando houver uma demanda energética mais alta, ou seja, uma combinação de CADÊNCIA ALTA + FORÇA ALTA, como se fosse uma fusão entre o Q2 e o Q4, resultando no Q1 (cad alta/força alta).

Resumindo: Q1 = alta demanda fisiológica; Q2 = alta demanda muscular; Q4 = alta demanda neuromuscular.

Mas e o Q3 (cad baixa/força baixa)?

O Q3 é o quadrante da ultra economia – aqui se demanda menos de todos os sistemas. Sempre que o atleta quiser descansar pedalando, este quadrante deve ser utilizado. Ex. descidas não muito velozes e postura defensiva dentro do pelotão. Aqui o atleta está “enchendo os pistões”, guardando seu precioso glicogênio muscular para quando as coisas ficarem mais sérias.

Na prática: como distribuir de forma mais eficiente os quadrantes de força?

Q1 = sprints, acelerações, subidas suaves (inclinação menor que 5%), provas abaixo de 1h de duração, contrarrelógio

Q2 = XCO, subidas técnicas, subidas duras (inclinação maior que 5%), trechos com forte vento contra

Q3 = descidas, trechos a favor do vento, dentro de um pelotão, provas de triathlon ou de longa duração (+4h)

Q4 = manutenção de velocidade

Devem ser treinados de forma específica e usados com inteligência dentro de competições, guardando esta energia para momentos específicos.

O que acontece se usar um quadrante diferente destas situações apresentadas? Vamos lá: sprintar em Q2 = limitação da produção de potência, vez que potência = força x velocidade. Descida em Q1 = desperdício de energia, pois resistência do vento aumenta exponencialmente com a velocidade – então quanto mais rápido estiver, menos energia deve ser aplicada.

O ciclismo de estrada, devido a flutuação de ritmo do pelotão, atravessa todos estes quadrantes, mas para uma situação de fuga, ataque, ou subida não muito íngreme, o Q1 é predominante – dentro do pelotão deve-se usar o Q3 o máximo possível. No CRI em que se imprime um ritmo “all out” por um determinado trecho, se usa majoritariamente o Q1 e também o Q4 (situações de velocidade alta vindo do Q3 – ex. depois de uma descida leve para manter o embalo antes de entrar novamente no Q1). Ainda se pode utilizar o Q2 se for um CRI com subidas muito inclinadas. Nesta modalidade não se usa praticamente nada do quadrante 3.

No mountain bike, especialmente em trechos muito acidentados ou em XCO, o quadrante predominante é o 2, tendo em vista que se faz muita força em baixas cadências, por ex. subida íngremes e trechos com pedras. Por exemplo, abaixo está o tempo que fiz na Subida do Levi, em Belo Horizonte, com média de inclinação em 9.4% (https://www.strava.com/activities/5339927969/segments/2831217911935590480). Quadrante majoritário, com quase 70% do tempo foi o Q2. Como havia algumas pequenas descidas e trecho plano dentro deste segmento, ainda houve um tempo considerável no Q3, o qual usava para descansar e baixar um pouco a FC. Detalhe que fiz o segundo melhor tempo, mas como paramos para largar na base, o Strava computou esta parada – enfim, acontece.

Velocidade mais baixa por conta da inclinação mais alta, demandando mais do Q2

Em subidas menos inclinadas (até 5% de inclinação) já se consegue desenvolver cadências mais altas, como neste segmento da Serra de Areia – PB, onde a média de inclinação é de 3.4% (https://www.strava.com/activities/5019688104/segments/2810907481433554912). Vejamos a distribuição dos quadrantes de força:

Percebam aqui que o quadrante predominante foi o Q1, seguido pelo Q4 – houve uma boa parcela do Q4 para se manter a velocidade, pois a inclinação não era constante, também tentando preservar a musculatura para o uso do Q2 ao final do segmento (parte mais inclinada que demandava uma cadência mais baixa).

Já no triathlon o quadrante que deve reinar absoluto é o 3, tendo em vista que o atleta tem que se preservar glicogênio muscular e as fibras de contração rápida para a corrida que chegará em seguida.

A distribuição dos quadrantes também afeta diretamente que tipo de fibra muscular se utiliza, pois em altas cadências, por haver uma menor carga nos músculos, se recruta mais fibras de contração lenta (vermelhas ou tipo I), as quais são mais eficientes, pois utilizam menos energia e são mais densas em mitocôndrias. Estas fibras de contração lenta são as maiores aliadas do ciclista.

Em cadências baixas (abaixo de 90 rpm) com potência alta já entra como sistema majoritário o muscular, utilizando-se das fibras de contração rápida (brancas ou tipo II). Estas fibras são menos densas em mitocôndrias e consequentemente mais propensas à rápida exaustão. A fonte majoritária de energia destas fibras advém do glicogênio muscular, o que é um fator limitante porque ele tem uma reserva limitada de cerca de 1500 a 2000 calorias na média entre ciclistas.

Para entender a distribuição de cadência veja esta figura abaixo retirada do livro de Allen Hunter (Training and Racing with a Power Meter . VeloPress. Edição do Kindle), retirada de uma prova de um dos seus atletas de ciclismo de estrada:

Traduzindo: este ciclista não pedala acima de 105 rpm nas corridas, o que pode ser um fator limitante para seu sucesso. Note como a cadência diminui enquanto a potência aumenta, o que indica uma mudança do sistema cardiovascular para o sistema muscular

Pela simples vista do gráfico percebe-se que este ciclista de estrada tem uma limitação de 105 rpm – acima disto ele diminui a cadência e usa mais força, mantendo uma cadência baixa. Imagine que ele está em um pelotão a 40km/h, alguém ataca e ele tenta dar um “pulo” para ir atrás – pelotão estica e chega a 45 km/h – nesse momento ele está em 53×13 e cadência 105 – desce duas marchas para 53×11 e cadência cai para 85 – nesse momento se ele não tiver força muscular para segurar alta potência em baixa cadência, perderá contato com o pelotão.

Pela gráfico acima percebe-se que em 100-105rpm, o ciclista passa para uma marcha mais pesada para continuar aumentando a velocidade. Isso pode indicar a necessidade de melhora no movimento da pedalada, ou pode demonstrar que mais força muscular se faz necessária quando ele troca a marcha para uma mais pesada. A relação entre cadencia e velocidade é similar a relação entre cadência e potência.

Ciclistas podem aprender muito analisando com cuidado estes gráficos de dados. No ciclismo, além de se fazer mais aerodinâmico, existem apenas duas outras variáveis envolvidas para se tornar mais veloz: você pode pedalar mais forte ou você pode pedalar mais rápido. Estes gráficos podem ajudar você a entender quais dessas opções (ou a combinação delas) pode surgir como a mais benéfica para seus objetivos em treinos e competições.

Bibliografia:

Allen Hunter. Training and Racing with a Power Meter . VeloPress. Edição do Kindle.

Sua estrada ainda não acabou

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